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Porque, ó sagrado, sobre a minha vida Derramaste o teu verbo Porque há a minha partida, A coroa de espinhos da verdade
Antes eu era sábio sem cuidados. Ouvia, à tarde finda, entrar os gados E o campo era solene e primitivo. Hoje que da verdade sou o escravo Só no meu ser tenho de a ter o travo, Estou exilado aqui e morto vivo.
Maldito o dia em que pedi a ciência! Mais maldito o que a deu porque me a deste! Que é feito dessa minha inconsciência Que a consciência, como um traje, veste? Hoje sei quasi tudo e fiquei triste... Porque me deste o que pedi, ó Santo? Sei a verdade, enfim, do Ser que existe. Prouvera a Deus que eu não soubesse tanto! Triste é saber. Mais vale, quasi a ovelha Que pasta entre a inconsciência do rebanho, Ver, sem cuidado mais que a pena, velha A cabeça e mais frio o corpo estranho. Ir para a morte como para casa, Sem pensar noutro mundo ou em volver Sem meditar □
Eu era um sábio, grato do seu lido, Eu vivia tranquilo e experiente Da letra vã dos livros e o sentido Que a leitura da letra nos consente. Mas, cansado do nada de saber Só o que os olhos podem ler, Eu Te implorei que desses Tua Luz. Deste, e, passado o seu primeiro dia, Vi que era outro em tristeza e nostalgia, E que a vera ciência é uma cruz.
Ó Ancião de Deus, volve atrás A maldição da benção que me deste, Restitui o meu ser à clara paz De só saber o parecer que nos traz A letra e o pouco desfrute que a veste!
Ah, quanto era melhor a débil vida Vivida entre o □ de cada dia, Que esta ciência que, desconhecida, A □ Fernando Pessoa □ espaço deixado em branco pelo autor
In Poesia 1931-1935 e não datada
, Assírio & Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine, 2006
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