MOTE ALHEIO
Trabalho descansariam,
se para vós trabalhasse;
tempos tristes passariam,
se algũa hora vos lembrasse.
GLOSA PRÓPRIA
Nunca o prazer se conhece
senão despois da tormenta;
tão-pouco o bem permanece
que, se o descanso florece,
logo o trabalho arrebenta.
Sempre os bens se lograriam;
mas os males tudo atalham.
Porém, já que assi porfiam,
onde descansos trabalham,
trabalhos descansariam.
Qualquer trabalho me fora
por vós grão contentamento;
nada sentira, Senhora,
se vira disto algũa hora
em vós um conhecimento.
Por mal que o mal me tratasse,
tudo por bem tomaria;
posto que o corpo cansasse,
a alma descansaria,
se para vós trabalhasse.
Quem vossas cruezas já
sofreu, a tudo se pôs;
costumado ficará,
e muito milhor será,
se trabalhar para vós.
Tristezas esqueceriam,
posto que mal me trataram;
anos não me lembrariam,
que, como estoutros passaram,
tempos tristes passariam.
Se fosse galardoado
este trabalho tão duro,
não vivera magoado.
Mas não o foi o passado,
como o será o futuro?
De cansar não cansaria,
se quiséreis que cansasse.
Cavar, morrer, fá-lo-ia;
tudo, enfim, me esqueceria,
se algũa hora vos lembrasse.