1
Essa morte aparente desagua no mar,
num oceano de cabeças que recolhe:
deixa de ser ela, um corpo, para ser
reflexo anónimo que dá nome às coisas.
Rosto multiplicado, forma
tão variada que permite
que todos a conheçam sem
nada afinal saberem dela.
2
Neste deserto o teu nome é um grito.
No solo, sol, ardente
de um país deserdado
começas a ser
uma litania. Entre a matéria murcha
o teu nome atinge
uma transparência. Mas
quem és tu?
Não há rosas secretas pelos campos.
Sei apenas de ti
o que me contaram
deformado (testemunhas parciais, boatos)
que importa?, que importas?, acaso
significas? Algum olhar te vê?
O acto da morte — assim ou de outro
modo —
é agora mito. Os nossos passos
firmam-se nos mortos, nos símbolos
que com eles construímos, nos heróis
que a morte nos fornece. Símbolo
te fizemos,
símbolo de precisarmos que existisses
para ter estandartes — símbolo
do pouco que valemos. Olhamos
o teu nome,
mastigamo-lo, cuspimo-lo contra:
tudo isso ajuda a estarmos vivos, alimenta,
serve de bordão
com que se abre um trecho do caminho.
3
Falo de ti para melhor conhecer as mãos inúteis
com que escrevo. Não para moldar searas
na esperança — oh, velha moldura de parede! —
mas para me ver,
fraco, meditando: a assinar papéis, a esquivar
as balas que respondem
à fome que não sinto. A consciência
disso
é a minha fraqueza ou uma força?
Posso
fazer mais, transformar
em algo vivo esta navalha de impotência
que nos rasga?
4
Escolheste a pior emigração:
a cada morte um relógio pára,
uma pedra inicia o movimento.
Nesta tragédia não haverá flores.
5
Humana, morta,
notícia, poster, poema,
serves a má consciência
na parede.
és o desenho, os versos,
o diálogo, nome
atirado como um seixo, ponto
cardeal, palavra de passe
contra o assédio diário
da conversa em família, da
solidão dos sinais.
Entras por um ouvido:
às vezes ficas por um tempo,
outras, sais pelo lado
e perdes-te na paisagem.
São férias. Foste
alguma vez mais do que uma palavra?
No regresso talvez. Afinal
não és nenhuma tempestade.
Passas-me pela cabeça e abro a boca
para te murmurar no silêncio que envergonha.
De vez em quando, é certo,
reapareces
e isso deve ter significado.
6
Flui entre nós
o mito que deforma.
Entre mim
e o que eras
nenhuma verdade,
nenhum contacto,
um espaço vazio
que contemplo atónito,
um espaço branco
onde inscrevo o que quero,
um pássaro, uma estrofe,
um vagido de fome,
relâmpago que fere
o torpor do crepúsculo...
Mas tudo é falso, tudo,
o play-back corrompe.
7
Abro-te os braços, mergulhado
na dúvida. Será esta
a lição que interpreto,
a relação que a morte
cria
entre nós e o mito
para não estarmos sós, para
as nossas mãos
de outro modo inertes?
A linha que apreendo
desse rosto de morte
será a exacta, a única?
Abro-te os braços, mergulhado
na dúvida. Acaso trocamos a vida
pelas palavras que a descrevem?