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Tu, que Diabo!, és velho. Es o único dos três que traz velhice Às festas. Tuas barbas brancas Têm contudo um ar terno A que o teu duro olhar não dá razão. Parece que com essas barbas brancas Por um fenómeno de imitação Pretendes ter um ar de Padre Eterno. Carcereiro do céu, isso é o que és, Basta ver o tamanho dessas chaves — As que Roma cruzou no seu brasão. Segundo aquele passo do Evangelho Do «Tu és Pedro» etcetera (Tu sabes), Que é, afinal, uma fraude, Meu velho, uma interpolação.
Carcereiro do céu, que chaves essas! Nem dão vontade de ser bom na terra, Se, segundo evangélicas promessas Vamos parar, no fim, a um céu claustral. Isso — fecharem-me — não quero eu, Nem com Deus e o que é seu Que o estar fechado faz-me mal Até na beatitude do teu céu, Entre os santos do paraíso, (A liberdade Deus dá a Deus — Um Deus que não sei se é o teu) O estar fechado, aqui ou ali, dizia eu Faz-me terríveis cócegas no juízo.
Enfim, que direi eu de ti, amigo, Que não seja uma coisa morta, Anti-popular, gongórica, Por fruste deselegante, Como de quem, sem saber nada, exorta. Começo por duvidar bastante, Desculpa-me chaveiro antigo, De que tivesses existência histórica.
Mas isso, é claro, não importa Se nos trazes A alegriada singeleza Ou a bondade que não sabe ter tristeza. O pior é que nada disso fazes. O teu semblante é duro e cru E as barbas que roubaste ao Deus que tens Só arrancam aos dandies teus loquases Ditos de dandecíssimos desdéns. Que diabo, és uma série de ninguéns O santo são as chaves, e não tu.
Para uns és S. Pedro, o grão porteiro Para outros as barbas já citadas, Para uns o tal fatídico chaveiro Que fecha à chave as almas sublimadas. Para uns fundaste a Roma do Papado (Andavas bêbado ou enganado Ou esqueceste O teu Mestre quando o fizeste) E para outros enfim, como é o povo E segundo as ideias que ele faz, És quem lhe não vem dar nada de novo — Umas barbas com S. Pedro lá por trás. É difícil tratar-te em verso ou prosa, Tudo em ti, salvo as barbas, é incerto. Tudo teu, salvo as chaves, não tem ser. E a alma mais humilde é clamorosa De qualquer coisa que se possa ver, Em sonho até, qual se estivesse perto.
Olha, eu confesso Que nunca escreveria Este vago poema, em que me apresso Só para me ver livre do teu nada, Se não fosse para dar o cunho A este livro da trilogia (Santo António, S. João, S. Pedro - De popular, que bem que soa!) Mas por que diabo de intuição errada É que vieste parar a Junho E a Lisboa?
Isto aqui ainda tem Um sorriso que lhe fica bem, Que até, até No teu dia, (Ó estupor velho Com um chavelho,) Nas ruas O povo anda com alegria É fé, Não em ti nem nas barbas tuas Mas no que a alegria é.
Olha, acabei. Que mais dizer-te, não sei. Espera lá, olha. Roma, fingindo que viceja, Lentamente se desfolha. Um gesto volvente e mudo Teu último gesto seja. Se tens poder milagroso, Se essas chaves abrem tudo, Deixa esse céu lastimoso. Deixa de vez esse céu, Desce até à humanidade E abre-lhe, enfim, no maior gesto teu, As portas da Justiça e da Verdade.
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1936
In Poesia 1931-1935 e não datada
, Assírio & Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine, 2006
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