Interlocutores: Jano e Franco
AUTOR - Dizem que havia um pastor
antre Tejo e Odiana,
que era perdido de amor
per ũa moça Joana.
Joana patas guardava
pela ribeira do Tejo,
seu pai acerca morava,
e o pastor, de Alentejo era,
e Jano se chamava.
Quando as fomes grandes foram,
que Alentejo foi perdido,
da aldea que chamam o Terrão
foi este pastor fugido.
Levava um pouco de gado,
que lhe ficou doutro muito
que lhe morreo de cansado;
que Alentejo era enxuito
d'ágoa e mui seco de prado.
Toda a terra foi perdida;
no campo do Tejo só
achava o gado guarida:
ver Alentejo era um dó!
E Jano, para salvar
o gado que lhe ficou,
foi esta terra buscar;
e um cuidado levou,
outro foi ele lá achar.
O dia que ali chegou
com seu gado e com seu fato,
com tudo se agasalhou
em ũa bicada de um mato.
E levando-o a pascer,
o outro dia, à ribeira,
Joana acertou de ir ver,
que se andava pela beira
do Tejo a flores colher.
Vestido branco trazia,
um pouco afrontada andava;
fermosa bem parecia
aos olhos de quem na olhava.
Jano, em vendo-a, foi pasmado;
mas, por ver que ela fazia,
escondeo-se antre um prado:
Joana flores colhia,
Jano colhia cuidado.
Despois que ela teve as flores
já colhidas, e escolhidas
as desvairadas coores,
com rosas entremetidas,
fez delas ũa capela,
e soltou os seus cabelos,
que eram tam longos como ela:
e de cada um a Jano em vê-los
lhe nascia ũa querela.
E em quanto aquisto fazia
Joana, o seu gado andava
por dentro da água fria
tudo após quem o guiava.
Um pato grande era a guia,
E todo junto em carreira,
ora rio acima ia,
ora, em a mesma maneira,
o rio abaixo descia.
Joana, como assentou
a capela, foi com a mão
à cabeça, e atentou
se estava em boa feição.
Não ficando satisfeita
do que da mão presumia,
partiu-se dali direita
para onde o rio fazia
d’ ágoa ũa mansa colheita.
Chegando à beira do rio,
as patas logo vierom
todas ũa e ũa, em fio,
que toda a água moverom.
De quanto ela já folgou
com aquestes gasalhados,
tanto entonces lhe pesou,
e com pedras e com brados
dali longe as enxotou.
Despois que elas foram idas
e que a ágoa assossegou,
Joana, as abas erguidas,
entrar pel’ ágoa ordenou;
e assentando-se, então,
as çapatas descalçou,
e, pondo-as sobre o chão,
por dentro d’ ágoa entrou
e a Jano pelo coração
Em quanto, com passos quedos,
Joana pela ágoa ia,
antre uns desejos e medos,
Jano, onde estava, ardia:
Não sabia se falasse,
se saísse, se estivesse;
que o amor mandava que ousasse,
e, por que a não perdesse,
fazia que arreceasse.
Dizem que, naquesto meo,
Se esteve Joana olhando;
E, descobrindo o seu seo,
Oulhou-se, e dixe, um ai dando:
«Eu guardo patas, coitada,
não sei onde isto há d’ ir ter,
mais era eu pêra guardada.
Que concerto foi este: ser
ermosa e mal empregada!»
Em aquisto Jano ouvindo,
não se pôde em si sofrer,
que, dantre as ervas saindo,
se não lançasse a correr.
Joana, quando sentio
os estrompidos de Jano,
e que se virou e o vio,
temor do presente dano
lhe deo peis com que fugio.
Mui perto estava o casal
onde vevia o pai dela,
que fez ir mais longe o mal,
que Jano teve de vê-la;
mas o medo que causou
Joana partir-se assi,
tanto as mãos lhe embaraçou
que a çapata esquerda, ali,
com a pressa lhe ficou.
Jano, quando vio e oulhou
que nenhum remédio havia,
pera o lugar se tornou
aonde ela n'água se via;
e vendo a çapata estar
no areal, à beira d'água,
foi-a correndo abraçar.
Tomando-a, creceo-lhe a mágoa
e começou de chorar.
Toda a çapata e os peitos
em lágrimas se banharam;
muitos foram os respeitos
que tanto choro causaram.
Encostado ao seu cajado,
a çapata na outra mão,
despois de um longo cuidado,
de dentro do coração
começou falar, cansado:
JANO - «Despojo da mais fermosa
cousa que viram meus olhos,
pera o coração abrolhos.
Çapata, deixada aqui,
pera mal de outro mor mal,
quem te leixou, leva a mim:
que troca tão desigual!
Mas, pois assi é, seja assim.
Agora hei vinte e um anos,
e nunca inda té agora
me acorda de sentir danos,
os deste meu gado em fora;
e hoje, per caso estranho,
(não sei em que hora aqui vim)
cobrei cuidado tamanho,
que aos outros todos pôs fim;
eu mesmo a mim mesmo estranho.
Antes que este mal viesse,
que me tantos vai mostrando,
que alguns cuidados tivesse,
não me matavam, cuidando.
Agora, por meus pecados,
e segundo em mim vou vendo,
não podem ser outros fados;
meus cuidados não entendo
e moiro-me assi de cuidados.
Dentro do meu pensamento
há tanta contrariedade,
que sento contra o que sento
vontade e contra vontade;
estou em tanto desvairo,
que não me entendo comigo.
Donde esperarei repairo?
— que vejo grande o perigo
e muito mor o contrairo.
Quem me trouxe a esta terra
alhea, onde guardada
me estava tamanha guerra
e a esperança levada?
Comigo me estou espantando
como em tam pouco me dei,
mas cuidando nisto estando,
os olhos com que outrem olhei
de mim se estavam vingando.
E por meu mal ser mor: inda
de mim tenho o agravo moor:
que da minha mágoa infinda
eu fui parte e causador;
que, se me não alevantara
d' antre as ervas onde estava,
mais dos meus olhos gozara.
E, já que assi se ordenava,
isto ao menos me ficara!
Desastres! cuidava eu já,
quando eu ontem aqui cheguei,
que a vós e à ventura má
ambos acabava! e errei!
Triste, que me parecia
que, o meu gado remediado,
comigo bem m' haveria!
E estava-me ordenado
estoutro mal que ainda havia!
Ó mal! não vos sabe a vós
quem me vos a mim causou!
Tristes dos meus olhos sós,
que trouverom, aonde estou,
olhos, a certo lugar —
ribeira mor das ribeiras,
25 que levam as águas ao mar —
vós me sereis verdadeiras
testemunhas do pesar».