Interlocutores: Persio e Fauno
AUTOR - Nas selvas, junto do mar
Persio pastor costumava
seu gado apascentar;
de nada se arreceava
nem tinha que arrecear.
Na mesma selva nasceo,
quem lhe depois dava dor
tanto que veo do Ceo
fazer-lhe guerra o Amor:
era mais forte, e venceo.
Sendo livre, mui isento,
vio dos olhos a Maria
e cegou o entendimento;
e Maria merecia de lhe dar pena e tormento.
Logo então começou
o seu gado enmagrecer;
nunca mais dele curou,
foi-se-lhe todo a perder
com o cuidado que cobrou.
Dias e noites velava,
nenhum espaço dormia.
Maria bem o oulhava;
com que cuidou que valia,
não valia o que cuidava:
confiou no merecer,
cuidou que a tinha de seu,
veo aí outro pastor ter,
com o que lhe prometeo ou deu,
se deixou dele vencer.
Levada pera outra terra,
vendo-se Persio sem ela,
vencido de nova guerra,
mandou a alma tras ela
e o corpo ficou na serra.
Veo Fauno, outro pastor,
que vinha ali a busca-lo,
seu criado e servidor;
começou a consola-lo,
o consolo lh'era pior.
FAUNO – Como descansas assi,
Persio, longe do teu gado?
Vejo-te jazer aqui,
sem cuidado do cuitado,
menos cuidado de ti:
pelos matos, sem pastor,
vão os cordeiros bradando
sem pascer, porque o temor
de ver os lobos em bando
lhes tira da erva o sabor.
Perdidas, entresilhadas,
as tuas ovelhas vejo;
delas morrem de cansadas,
e tu tens morto o dessejo
d'acudires às coitadas.
Andam fracos, desmaiados,
os mastins que as guardavam;
desfeitos e mal tratados,
não ladram como ladravam,
nem podem, de mal curados.
Qu'é do teu rabil prezado,
teu cajado e teu çurrão?
Tudo te vejo mudado;
tinhas um cuidado então,
tens agora outro cuidado.
Mal que não temias, creo
que te vejo; isto temo.
Tomou-te sem ter receo,
então pôs-te em tal estremo,
que te fez de ti alheo.
Á sombra dos arvoredos
o teu gado apascentavas;
e se os ventos eram quedos
mil vilancetes cantavas
conformes a teus segredos.
Então teu gado engordava,
tinhas pasto todo o ano;
todo pastor confessava
seres tu o mais ufano
que então nas serras andava.
Acorda, acorda, coitado,
dá-me conta de teu dano,
porque a um desconsolado
um consolo, ou um engano
tira às vezes de cuidado.
Poderás julgar então,
se quiseres razão ter,
o teu cuidado por vão;
mas no grande bem querer
poucas vezes há razão.
Pérsio- Os males que são sem cura,
mal os pode outrem curar;
nem na gram desaventura
não há mais que aventurar
que deixar tudo à ventura.
Não me digas que há hi bem,
que é maior mal para mi,
nem que ouviste a ninguém,
que me vai lembrar daí
que perdi o que outrem tem.
Vi-me já preso; contente,
a meu mal queria bem;
agora fujo da gente,
não vejo, triste, ninguém
que viva mais descontente.
Té no pasto dos meus gados
tinha a condição ufana;
mas aos mal-aventurados
crê que tudo se lhes dana
com a mudança dos cuidados.
Sentava-me em um penedo
que no meo d' ágoa estava;
então dali, só e quedo,
a minha frauta tocava,
bem fora de nenhum medo:
muito livre de cautelas,
com os olhos nas mesmas mágoas,
co cuidado longe delas,
chorava ali muitas mágoas,
folgando muito com elas.
Um pastor, que eu não temia,
de muito mais gado que eu,
que longe dali pascia,
creo que, pelo mal meu,
veo ter ali um dia.
Vendo ela um pastor tal,
sem razão, ou com razão,
fê-lo logo maioral:
senti eu meu mal então,
mas despois senti mor mal.
FAUNO- Quem pensa por cousa leve,
deve sempre ser penado;
quem com a vida não se atreve,
deve ser dela privado,
se a morte faz o que deve.
Mulher que a outrem se entrega,
querer-lhe bem em estremo
vem de andar a rezão cega,
ou do esprito ser pequeno;
de ũa destas não se nega.
PERSIO - A gram dor, quem na tiver,
se com dor há-de passá-la,
em quanto lhe ela doer,
pode mal dissimulá-la,
pior a pode esconder.
Se não lanço esta de mim,
(não posso tanto comigo)
leixar-me-ei morrer assim,
que a morte é menos perigo,
que outros perigos a mim.
FAUNO- Os fracos de coração
obedecem à vontade;
e muito mais sem razão
se perde a liberdade
por algum cuidado vão.
Se dessejas descansar
deste, que te traz cansado,
lança-te, Persio, a cuidar
que às vezes, o dessejado,
alcançado, dá pesar.
PERSIO- Conselho quero de ti,
mas não já para ter vida;
se o pode haver aí
para a poder ter perdida,
esse me dá tu a mi:
que está mais certo o perigo
onde a vida é triste, e tal.
Deixa-me acabar, te digo,
que pode ser que este mal
se acabe também comigo.
FAUNO - Nas cousas que dão pesar,
tristeza, pena e tormento,
nestas hás tu d'amostrar
temperança e sofrimento,
que no al não és de louvar.
Se agora padeces dor,
ela se te irá minguando,
cada vez será menor;
ir-se-á o tempo gastando,
levá-la-á por onde for.
PERSIO- Bem vejo que peno em vão;
mas quem será arrazoado
em males tão sem razão?
pois não há modo temperado
no amor e na afeição.
Se dizes que é vaidade
ter lembrança do perdido,
vou sentindo que é verdade;
mas quem viste tu esquecido
daquilo que dá soidade?
FAUNO - Aos estremos sinalados
se conhece toda a gente;
no perigo, os esforçados:
que em bonança ser valente
não é de ânimos ousados.
Por isto, quero de ti
que te não deixes morrer.
Crê-me tu, Persio, a mi,
que não há maior vencer
que vencer-se homem a si.