[Excerto]
Ah, como tudo é sombra, dor, segredo!
De longe, aspectos de alma que nos falam;
De perto, brutas formas de penedo!
Que loucos sofrimentos nos abalam!
Porque não há, no mundo, quem as ouça,
As dolorosas vozes que se calam!
Ó gente enamorada! Ó gente moça!
Que, de repente, ao túmulo, baixais,
Qual o vosso pecado? A culpa vossa?
Ó procissão das lágrimas, dos ais,
Diante de mim, passando eternamente,
A caminho dos antros sepulcrais!
Dor sem fim, sem princípio, dor presente,
Martirizando as almas; e, sobre elas,
O sorriso de Deus indiferente!
O Deus que põe, na face das estrelas,
Nódoas de sombra, e enfeita, com as flores
Da morte, as brancas noivas e as donzelas;
O Deus, aceso em raivas e furores,
Que mata as criancinhas sem pecado
E parece viver das nossas dores,
E fez do nosso pranto o mar salgado,
E fez da nossa angústia um ermo outeiro,
E, sobre ele, Jesus crucificado;
O Deus que me tornou prisioneiro,
E que transforma tudo quanto eu amo,
Em desfeita visão de nevoeiro;
Ah, esse Deus que, quando por Deus chamo,
É silêncio que em neve se condensa,
A própria sombra inerte que eu derramo…
Ignoto Deus-fantasma, sem presença,
Que, em substâncias de dor, edificou
As árvores, o sol, a noite imensa.
E, em desgraçado barro modelou
Minha figura trágica e represa
Num impotente, empedernido voo…
É o Deus do abismo, o pai da Natureza,
Génio do Crime, velho Deus do mal,
Divindade da fúnebre tristeza;
O Deus criador das trevas, contra o qual,
Sozinho, se ergue em mim, mas sem temor,
O meu divino ser espiritual;
Aquele puro arcanjo anunciador
Da sempiterna luz dum novo dia,
Duma nova esperança e novo amor!
Meu ser, onde se muda em alegria
A amargura terrena, onde a matéria
É já perfeita e mística harmonia;
Meu ser, que afirma o bem, ante a miséria
Das transitórias cousas; que alevanta,
Contra a sombra do inferno, a luz etérea,
E os demónios maléficos espanta!