Sou de longe e vim de longe, 
Para longe é que me vou... 
Eis a profunda certeza 
Que o andar cá me ensinou. 
Porque me atirais carregos 
Que o mundo vos atirou? 
São vossos..., pois vós sois deles! 
Mas não são meus, que o não sou! 

Minha vida em qualquer vida 
São dois dias de hospedagem. 
Divago de vida em vida, 
Vivo em adeus e em viagem. 
Poupai-me aos vossos costumes, 
Que só parei de passagem! 
Poupai-me...!, e que eu sonhe um pouco 
No fundo da carruagem. 

Basta-me ter o que tenho 
Quer para andar, quer andado! 
Basta-me a língua que falo, 
Que a falo..., e fico calado! 
Basta-me dar-vos a todos 
Água da chaga do lado! 
Basta-me, sendo infinito, 
Ver-me a um cadáver atado. 

Talvez, porém, que este mundo 
Fingisse, quase, ser meu, 
Talvez..., nuns dias de férias 
Que o Alto me concedeu, 
Se eu pudera passear nele, 
Sem tutor e sem lebréu, 
Pastando as ervas da terra, 
Bebendo os astros do céu... 

Porque me pondes olheiras, 
E me calais com mordaças? 
Porque me sois cicerones 
Destes museus com vidraças? 
Porque me dais estas sopas, 
Com vinho das vossas taças? 
Porque me tendes receio, 
Se ignoro as vossas trapaças? 

Ah, feia maneira a vossa 
De hospedar um estrangeiro! 
Pondes-me a servir na casa 
Como um servo e um prisioneiro; 
Violentais-me à vossa mesa, 
No fim levais-me dinheiro, 
Fazeis-me e pedis-me brindes 
De farsante e de rafeiro! 

Pois que o meu corpo vos sirva, 
Se vos serve carne morta! 
Minha lepra se enrodilhe 
No lixo da vossa porta! 
Minhas patas sigam vossa 
Recta viela retorta...! 
Fui eu quem fez essa farsa? 
Tudo isso que diz? que importa? 

Só diz que o meu corpo cumpre 
Não sei que necessidade. 
Só diz que ele e eu rompemos 
Meu sonho de sociedade... 
Só diz que por vós, por ele, 
Renego a felicidade, 
— Mas só por lhe dar, e dar-vos, 
E me dar a liberdade! 


In Poesia I - Obra completa , Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2001
José Régio
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