Mas eu, mein Werther, estou acima de tudo isso:estou sozinho com as estrelas. Sartor Resartus
Passo frente às janelas a brilhar
Dentro, com luz por cortinas velada
E nas casas eu vejo perpassar
De vez em vez uma sombra a desenhar
O branco da cortina amarelada.
Doutras, só débil claridade vem:
Dentro, gente conversa, sei-o bem.
E sinto frio, sinto-me isolado,
Não propriamente por não ter alguém,
Mas — ah! O sonho nunca acabado! —
Porque entre muitos sou um, isolado,
Como a sepultura entre flores se tem;
Um só e mais só do que possa ser
Possível à mente conceber.
Se eu tivesse nascido p'ra aspirar
A nada mais que a vida destes entes
A quem o viver não faz cansar.
Em conversa à lareira, a dormitar
Na verdade consigo bem contentes,
Por trás das cortinas, nessa luz
Que vista de fora até reluz.
Pudesse mais do que estes não querer,
Fosse todo o desejo confinado
À família, ao fácil conviver.
Às alegrias mundanas do viver,
De filhos a brincar eu rodeado,
Então seria feliz por não ter mais
Que a vida banal dos homens banais.
Mas, ai! Que dentro do meu coração
Tenho algo que não posso sossegar —
Mística e delirante aflição
Que me transmite uma inquietação,
Uma dor, um mal e um pesar;
Eu gemo como um Sísifo cansado
A pedra irónica do mundo encostado.
Eu, o eternamente excluído
De todo o convívio e do prazer.
Mente a cismar, coração dorido
Até que o pensar enraivecido
Inundou a alma que o fez nascer —
Choro por saber que em mim se alia
Um misto de angústia e de alegria.
E fico frio ante a normalidade.
Frio fico, num frio de aterrar
Como um velho, velho sem idade,
Que guarda segredos que são raridade,
Segredos que ele não sabe explicar
Mas que o ver do mundo assim oferece
À mente que repouso não conhece.
Que bom conversar depois do jantar
E ficar sentado num vago torpor,
Sem o sentido do dever a esmagar
Todo o conforto e todo o bem-estar
Ou funda aspiração a lhes sobrepor;
Ter um sossego que a dor não enchesse
Nem o senti-lo como não devesse.
Um lar, repouso, filhos c mulher —
Nenhuma destas coisas é p'ra quem
Algo para além desta vida quer
Numa constante luta no seu ser
Sabendo já que vitória não tem.
Ai de mim! E saber que ninguém entende
Este desejo que tudo transcende.
Alguns num teatro estão ausentes
Ou noutro lugar para divertir
E mantêm longe, p'ra sempre contentes,
Os cães do cuidado e do pensamento
Que não sabem como brincar ou rir:
Estes são esperados na casa que têm,
E uma fresca luz das janelas vem,
Um aconchego as casas deve encher
De algo parecido com a sonolência,
E nesse profundo como-que-viver
Custa pensar corações a bater.
(…)
Mas estes são normais e eu que estou
Aflito p'lo seu viver — o que sou?
Oh, a alegria! A felicidade!
Não querer mais que a vida viver,
Sentir do prazer, da adversidade,
Um mais ou menos de normalidade
Junto de amigos, filhos ou mulher!
Mas nada disto a alma pode ter,
Pois mais do que loucura há no meu ser.
Choro lágrimas tristes — não viver
Como estes a humana alegria!
Oh! Que eu pudesse assim tanto crer
No que senso e hábito podem trazer
E que vivendo não se sacia!
Sei que no homem, pobre é a ventura,
Mas verdadeira — não como a amargura.
Às vezes sonho poder-me sentar
Bem tranquilo, junto ao meu fogão,
Minha esposa e filhos vendo passar
Meio a dormir e sem me imaginar
No meio destes sonhos em confusão;
E eu poderia ser nobre e puro
Em meu pensar, não tonto e obscuro.
Às vezes sonho com um destes lares,
Da sociedade bem afastado,
Um tomo, de entre os muitos milhares
Da vida, podia o coração guardar
Vagueando fraco, livre e desolado;
Esse sossego talvez fosse abrigo
À alma que anseia, ao coração dorido.
Mas só no pensar, de tão ameno
Existir aqui, tão simples assim,
Como isso em si tivesse veneno
Arrepio-me, entristeço e tremo
Como de místico medo cm mim;
Temo pensar minha vida passando
Como aquela que os homens vão levando.
Numa vida doce eu temo pensar,
Família e amigos perto de mim.
Meus olhos detestam o encontrar
Do que é finito — a rua, o lar
E todas as coisas que têm fim.
Não sei o que é que aspiro a ter
Mas isto sei que não posso querer.
Em constante desajuste assim
E frio perante o que é o vulgar,
Desço no próprio inferno até ao fim,
Ouvindo o sino a dobrar em mim
Que do meu envelhecer me vem falar,
Mas isto num tom tão estranho vem
Que da Mudança o mistério contém.
Assim — ai! Serei por obrigação
Um estranho sempre onde eu estiver;
Mesmo o leproso na sua exclusão
Não tem comigo comparação,
Eu que não sei a vida sofrer;
Os homens irmãos, o mundo meu lar,
São prisões, cadeias de prender e atar.
Passo. As janelas atrás vão ficar
E a sua paz em mim não persiste.
Mas tremo ainda do que o meu pensar
Sente e concebe; e, sem cessar,
Vagueio ao vento, alegre mas triste
Em mim, por algo perceber
Que ninguém mais pode conceber.