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Há certas cousas sem relevo Do claro mundo exterior Que às vezes do meu pleno enlevo Rasgam com uma pena ou dor.
Assim eu era alegre agora Mas eis que a maré dando no cais (E o som é tão bom!) e eis que chora Minha alegria posta aos ais.
Porquê? Que tem este ruído? Nada me evoca, ou lembra ou traz Que tenha ou nexo ou um sentido Nem voz tem como a que a dor faz...
Mas ah, um tédio entra comigo A tudo quanto me alegrou E vem dentro de mim consigo Saber em que tristeza estou... Fecho os olhos... E eis que recordo Que já ouvi esta maré Mas não era água esse ruído surdo Ou qualquer coisa do que é Era uma voz... Sim, uma fala De alguém? De quem? O quê? Que voz? Aonde? Quando? E a alma me abala Uma saudade e um medo a sós... Onde é que ouvi falar outrora Com esta triste intonação Que a água tem batido agora Contra o cais posto em solidão? E penso se talvez — quem sabe? — Sejam esta e aquela voz A mesma... E o mundo que me cabe No olhar e no ouvir Não seja um □ velando Vozes e gestos do outro lado Na sombra outro sentido dando. Se esta voz que ouço aqui E a mesma voz que antes ouvi... Sim, sim, a mesma voz falando No mesmo lugar e ocasião E o intrigante mundo Este bisonho de ilusão Traduzido através do termo Tempo, espaço para mim Em maré dando no cais ermo A voz que ouvi e ouço assim...
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1914
In Poesia 1902-1917
, Assírio & Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine, 2005
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