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Nós podemos viver alegremente, Sem que venham com fórmulas legais, Unir as nossas mãos, eternamente, As mãos sacerdotais.
Eu posso ver os ombros teus desnudos, Palpá-los, contemplar-lhes a brancura, E até beijar teus olhos tão ramudos, Cor de azeitona escura.
Eu posso, se quiser, cheio de manha, Sondar, quando vestida, p’ra dar fé, A tua camisinha de bretanha, Ornada de crochet.
Posso sentir-te em fogo, escandecida, De faces cor-de-rosa e vermelhão, Junto a mim, com langor, entredormida, Nas noites de verão.
Eu posso, com valor que nada teme, Contigo preparar lautos festins, E ajudar-te a fazer o leite-creme, E os mélicos pudins.
Eu tudo posso dar-te, tudo, tudo, Dar-te a vida, o calor, dar-te cognac, Hinos de amor, vestidos de veludo, E botas de duraque
E até posso com ar de rei, que o sou! Dar-te cautelas brancas, minha rola, Da grande loteria que passou, Da boa, da espanhola,
Já vês, pois, que podemos viver juntos, Nos mesmos aposentos confortáveis, Comer dos mesmos bolos e presuntos, E rir dos miseráveis.
Nós podemos, nós dois, por nossa sina, Quando o Sol é mais rúbido e escarlate, Beber na mesma chávena da China, O nosso chocolate.
E podemos até, noites amadas! Dormir juntos dum modo galhofeiro, Com as nossas cabeças repousadas, No mesmo travesseiro.
Posso ser teu amigo até à morte, Sumamente amigo! Mas por lei, Ligar a minha sorte à tua sorte, Eu nunca poderei!
Eu posso amar-te como o Dante amou, Seguir-te sempre como a luz ao raio, Mas ir, contigo, à igreja, isso não vou, Lá essa é que eu não caio!
In Livro de Cesário Verde
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